Em um Brasil em seu período mais amedrontador da era republicana, Ainda Estou Aqui, o novo filme de Walter Salles adapta o livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva com o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, vencedores do prêmio de melhor roteiro no 81ª Festival Internacional de Cinema de Veneza. Na cidade do Rio de Janeiro na década de 70, Rubens e Eunice Paiva vivem com seus cinco filhos à beira da praia em uma casa sempre frequentada por amigos, e em um dia qualquer, Rubens é conduzido por militares à paisana e desaparece.
Vinte e sete anos depois Selton Mello e Fernanda Torres se encontram em um longa-metragem que parte de uma premissa ao redor dos conflitos da ditadura militar brasileira, porém vemos grandes diferenças entre Ainda Estou Aqui, de Walter, com O Que é Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto. São notáveis materiais de estudo quando pensamos em analisar e repensar a ditadura, entretanto Bruno se propõe a fazer um filme sobre revolucionários, Walter faz um filme sobre a preservação de uma memória e um luto eterno. Mas os dois, Barreto e Salles, provocam o conservadorismo e estreitam o diálogo sobre o cinema como uma resistência contra a repressão, assim como os filmes de Bressane e Glauber e as músicas de Caetano e Gilberto Gil.
Ainda Estou Aqui é um sentimento elevado a dois, e todos seus elementos são trabalhados para pensar como tornar esse sentimento em sua maior potência dramática para toda a narrativa, impossível criticar o design de produção e a fotografia do filme; a experiência de Salles com o cinema documentário torna tudo mais dramático quando estamos vendo caminhões das forças militares transitando pela avenida com uma singela câmera analógica em mãos se tornando algo tão real que podemos pensar: “Essa merda é real?”. A casa dialoga com seus personagens, a casa sofre e a casa se reprime com a ausência de uma figura que une todo o núcleo familiar e que desmorona com sua falta, e com a casa vazia sentimos o fim de um ciclo doloroso e a aceitação da tragédia que aconteceu, uma desistência para poupar todos os envolvidos. Rubens fez o que devia fazer: salvar vidas de um sistema opressor, e foi oprimido com a sua tentativa de salvar um Brasil marcado por tigres e abutres.
Após um belo 2023 com Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, nada é tão gostoso do que pensar em como os filmes dialogam tecnicamente entre si. Pensar o cinema como algo provocativo e menos gráfico é louvável; sabemos o que os militares fizeram, sabemos o que os nazistas fizeram. E então deixar gritos e gemidos de dor em um segundo plano é de se aplaudir quando há um constructo tão bem executado, como o longa inglês e brasileiro tiveram – Salles torna os gritos como uma agressão a uma mãe desesperada sem seu marido e filhos, Glazer banaliza o massacre com gritaria e disparos em uma perspectiva do gestor do campo de Auschwitz e sua família. O som se torna uma ferramenta que sobressai a imagem e demonstra a potência de um produto bem executado em seu panorama geral; os cineastas fazem a questão de fazer uma denúncia, e essa denúncia se torna potente sem a necessidade de incluir homens sendo mortos e espancados. Não pude deixar de notar os gritos de dor de Selton Mello ao fundo do primeiro interrogatório de Eunice Paiva, interpretada majoritariamente por Fernanda Torres e em poucos minutos na reta final do filme por sua mãe, Fernanda Montenegro.
E enquanto Selton Mello interpretando Rubens é o coração da família Paiva, é necessário que essa família tenha uma alma para suportar a ausência de Rubens dentro desse núcleo afetivo, e essa alma é Fernanda Torres como Eunice. A atriz desempenha sua melhor interpretação no cinema em mais um filme em que ela trabalha com Walter Salles; Torres é discreta e interpreta Eunice como uma pessoa confusa e atormentada pela falta de um ente querido que a completa. E enquanto Eunice necessita proteger sua família da verdade e dos assédios dos militares que entram e ficam na rua de sua casa na espreita, ela luta para que consiga fazer justiça por Rubens e tirá-lo de seu aprisionamento. É cruel ver as sutilezas de uma atuação pautada em uma cara fechada que se contradiz a suas falas, pois ela não está bem, mas precisa ser forte para proteger aqueles que ela ama, enquanto ainda sobram resquícios de esperança para rever Rubens.
Ainda Estou Aqui provoca incômodo e revolta de um tempo tortuoso que marca desespero e inquietação. Não vivi a ditadura e ninguém da minha família foi afetado violentamente por ela, viviam em espaço rural no interior do Pará e eu nunca ouvi histórias sobre o período e muito menos estudei sobre isso no ensino médio, então sempre fiz estudos muito específicos sobre o período e que me propiciam pouco repertório e local de fala para discorrer sobre ele. Mas vivi o governo bolsonarista e o terror que foi viver em um país que negligencia vidas e mata pessoas negras, LBGTQIAP+, periféricas, e que corta verbas culturais e educacionais, dentre outras. Não é a mesma coisa, mas o meu ponto é pensar em como devemos agir para não permitir que mais uma ditadura ocorra, que saibamos escolher vereadores, prefeitos, governadores e presidentes que não vendam nosso país para o exterior e que valorizem o que temos dentro de nossas terras; tradição e amor pelo nosso país do futebol, do samba, do MPB e do riquíssimo cinema.
E nós brasileiros sonhamos com Ainda Estou Aqui vencendo algum prêmio da Academia, o famoso Oscar, mas uma coisa deve ser dita: não precisamos de um Oscar para provar que nosso cinema existe para Hollywood ou Europa. Tivemos filmes espetaculares que não estavam brigando por premiações do “maior” evento cinematográfico do mundo, filmes quiçá melhores que esses blockbusters estadunidenses e esses filmes pseudo-cultos europeus. O nosso idioma incomoda, a nossa escrita incomoda, os nossos profissionais incomodam, e se é para incomodar, vamos incomodar mesmo. Esse ano já tivemos lançamentos espetaculares como A Flor de Buriti, Estranho Caminho, Motel Destino, A Queda do Céu, dentre outros. E o nosso cinema goiano foi capaz de vencer o tradicional kikito em Gramado com Oeste Outra Vez, de Erico Rassi; o cinema brasileiro é pluralidade, temos um vasto leque de histórias que merecem estar nas grandes telas, nos streamings e nas casas de toda nossa população. E temos que ocupar as salas de cinema, cineclubes e streamings para mostrar que os nossos filmes têm um sentido de existência.
Por Marcus Vinicius Diniz
Publicado em: 18/11/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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